Estávamos à mesa, compartilhando um dos habituais almoços de terça-feira, o dia da semana em que recebíamos o Primo Décio, cumprindo seu ritual de muitos anos. E as conversas, das mais variadas, eram, como sempre, muito interessantes. Sobretudo, instrutivas, pelo conhecimento e a experiência de vida daquele professor de História que conhecia boa parte desse nosso mundo.
Cinéfilo e apaixonado pela atriz Vanessa Redgrave, contou-nos que, certa vez, lá pelos anos oitenta, assistindo uma peça de teatro estrelada por ela, em Nova Iorque, ele não se conteve. Querendo vê-la bem de perto, deixou a poltrona e foi até bem próximo do palco para admirar sua atriz preferida. De repente, ela olhou na direção dele e, como se entendesse o encantamento provocado naquele fã brasileiro, mudou o andar de todas as outras vezes e passou bem perto do meu primo. Esboçou discreto sorriso, cuidando para não prejudicar a cena, que era dramática, e seguiu com seu trabalho.
E o Primo Décio, que dificilmente dava importância para histórias românticas, suspirou, envolvido pela bonita lembrança, repetindo o gesto quando lhe servi pudim de laranja.
Conversa vai, conversa vem, contamos sobre nossa inesquecível experiência em uma das magníficas igrejas que conhecêramos no leste europeu, do Menino Jesus de Praga. Da emoção que tomou conta de mim, provocada pelas lembranças da fé materna, e da incrível surpresa que tivemos. Eis que, durante a visita, procurando pelo endereço de outro local de nosso interesse, meu marido encontrou um bilhete escrito por minha mãe, alguns anos antes, que ele acreditava ter perdido. Era sobre suas orações para nos proteger em todas as viagens que fizéssemos. Ao lado daquelas belas palavras, uma pequena imagem do Menino Jesus de Praga. E todos nos emocionamos, inclusive outros visitantes que não conhecíamos e perceberam o que estava acontecendo.
Encantado com a nossa história, meu primo tentou disfarçar, não queria que pensássemos que ele começara a acreditar em milagres. Saboreando o cafezinho recém passado, chamou de coincidência espetacular o bilhete ser reencontrado justamente lá.
O assunto, então, tomou outro rumo, o da crença em Deus. Falei ao meu primo que o talento daquela atriz que ele tanto admirava era chamado de “divino”, e com razão, pois cada um de nós vive com uma tarefa a cumprir, a de melhorar o mundo, sempre acreditando que Deus se manifesta e cuida de todos. Ao que ele retrucou, afirmando que nada existe além desta vida, que seria grande perda de tempo fazer orações, ter fé em Deus. Foi quando meu marido lhe fez uma pergunta crucial: “Décio, qual é a vantagem de não acreditar em Deus?”, e meu primo não soube responder.
Estávamos à mesa, na primeira terça-feira deste agosto, e lembramos das histórias do saudoso Primo Décio, das boas conversas que tínhamos. E da única pergunta que ele não soube nos responder.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 05/8/22