Aviões riscando o céu, passando lá no alto, costumavam captar a minha atenção infantil. Aquele antigo mundo, de brincar depois do tema de casa, entrava no modo “espera” para que eu acompanhasse o traçado branco até onde meus olhos pudessem alcançar.
Verdade seja dita, até hoje me encantam as migalhas das trilhas de condensação deixadas pelo caminho, parecendo histórias de Joãos e Marias escritas pelos ares.
Avistados bem pequeninos, sem aparentar o verdadeiro tamanho, muitos aviões já me fizeram dispersa das coisas de chão batido, dessas terras fronteiriças com águas que bem conheço. Leituras e tarefas brevemente adiadas, caminhadas de repente interrompidas, pensamentos práticos obedecendo o comando de “pause”.
No instante precioso de cada uma dessas aparições, feitas pela condensação do vapor de água, coração e mente abrem alas para a carga imaginária a que me entrego. Roteiros se desdobram e se transformam em outros. Gosto de ficar adivinhando tripulação, passageiros, tudo enfim que esteja envolvido no tênue rastro do coletivo que atravessa oceanos e cordilheiras, carregando sorrisos e lágrimas mundo afora com suas chegadas e partidas.
Pode ser de ida ou de vinda, cada viagem observada, o sonho da decisão me pertence. Talvez o começo corajoso para o casal que partiu em busca de trabalho e de estudos especializados. Ou o final feliz da família construída longe de suas raízes primeiras, desta vez voltando para ficar.
Sobre as crianças, talvez duas acompanhem a mãe para esperada visita aos avós; outra, sentada ao lado do pai, ruma faceira e curiosa ao verão entre primos e tios.
Alguns adultos, decerto solitários, fugindo um pouco de si mesmos pelos ares; mulheres e homens com gosto por conhecer o mundo; outros tantos se consolando de recentes perdas, ou comemorando ganhos inesperados. Penso que há gente querendo apenas distração para a vida, talvez colocar ponto final em saudades exageradas, começar uma vida nova, ver obras de arte, surfar em praias paradisíacas.
Sempre gostei de aviões riscando o céu, deixando esteiras de condensação pelo caminho, feito histórias de Joãos e Marias escritas pelos ares. E quando me faço passageira, realidade e imaginação se invertem. Pergunto a mim mesma, procurando chão firme pela janelinha, se existem crianças que me acompanham nesse trajeto, quantos adultos talvez estejam olhando para cima enquanto meu avião passa. Sobretudo, conjecturo sobre o que lhes faz parar o tempo para seguirem o desenho de giz branco que eu ajudo a fazer. Me encanto só de pensar que enredos para a minha vida são criados, lá de baixo, com a mesma delicadeza a que me acostumei desde criança.
Emocionante e inexplicável inspiração, nascida de riscos enfeitando o céu. Traçados a criar belas histórias.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 27/10/23