Prisioneira de Época

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Dia desses, encontrei uma colega de escola. Não nos víamos desde os dias em que, pelo microscópio, aprendemos a enxergar pequeninos seres que pensávamos habitar apenas os livros de ciências. Grata surpresa, aquela. Foi bom revê-la, saber um pouco do que tinha lhe acontecido neste intervalo em que nos distanciamos, diplomas embaixo dos braços e corações esperançosos.

Eis que, como era de se esperar, da forma mais do que perfeita, agimos como as boas amigas de antes, postas frente a frente outra vez pela camaradagem do acaso.

Depois de tantos aniversários sem notícias, contamos dos nossos amores, das novas famílias construídas e das saudades, do trabalho e das viagens; sobretudo, das tantas mudanças que a vida nos ofereceu.

Em obediência aos relógios, trocamos abraços e endereços, digitamos algarismos de telefones, arrobas de e-mails. E prometemos, uma para a outra, agendar outra valiosa conversa para breve.

Por fim, repetindo o destino, seguimos nossos caminhos de diferentes traçados, com suas lembranças e promessas de reencontros.

Na volta para casa, naquele dia em que encontrei minha colega de uma outra época, me envolveram as reminiscências. Fiquei recordando de como éramos, das roupas que usávamos, dos sucessos que gostávamos de ouvir, dos filmes inesquecíveis, das nossas incontáveis transformações rumo à vida adulta. E me dei conta, então, do que realmente acontecera.

Enquanto eu acompanhara os passos largos da existência, procurando aprender o novo e me adaptar às mudanças sem negar o aprendizado de antes, minha colega, apesar da idade adulta estampada no rosto e nos trejeitos, permanecera naqueles dias escolares que um dia tivemos, negando-se a acompanhar o ritmo do universo.

Seus cabelos cacheados, corte inspirado na novela Pigmalião  70, continuavam os mesmos, agora acrescidos de fios brancos. As botas de camurça sem salto, o jeans surrado e o blusão de tricô em comprimento e largura exagerados também foram conservados no visual daquela mulher que, mesmo tendo crescido e se tornado adulta como eu, parecia ter fixado a própria vida em um tempo passado.

Em nossa breve e saudosa conversa, ela me confessou não ouvir canções que não sejam as de antigos ídolos, nem se permitir falar com leveza de amizades e amores antigos, assim como de problemas juvenis que, pelo passar do tempo, para mim se transformaram em histórias engraçadas.

O que minha querida amiga de escola deseja, enfim percebi, é voar de volta ao passado e de lá nunca mais voltar; na verdade, talvez precise esquecer que o futuro daqueles dias já chegou e se chama hoje. Quem sabe tenha se transformado em uma pessoa descrente de felicidades novas que de repente chegam para todos.

A colega de escola que gostei tanto de reencontrar por acaso, dia desses, ainda desfila seu corte de cabelo em camadas, estilo Pigmalião 70, uma novela que nossas mães acompanhavam pela tevê nos anos setenta.

Virou prisioneira de uma época.

Cristina André

Publicado em 3/5/24

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