Dia desses, a menina de onze anos recém-feitos que me chama de Vó ouviu alguém falando em “lado A e lado B” de uma situação real e quis saber o significado daquele comentário. Tive que voltar no tempo para lhe contar sobre os discos de vinil de dois lados que escutávamos em toca-discos portáteis, com um braço segurando a minúscula agulha de cristal que tocava delicadamente a superfície de vinil, ação que resultava na reprodução do som que ouvíamos. No lado A, as melhores músicas; no lado B, geralmente poucas se salvavam, estavam ali apenas para cumprir quotas mínimas de faixas (músicas). A gente precisava comprar o disco inteiro para ouvir as melhores, juntar dinheiro e pagar pelas doze faixas, e patrocinar a capa, que era como uma obra de arte.
E a guriazinha de ouvidos atentos, impressionada com o meu sacrifício financeiro e musical, depois de ouvir outros detalhes pertinentes a long-plays e álbuns duplos, compactos simples e duplos, me falou: “Coitada, como era complicado ouvir música naquele tempo!”. Respondi que era bom, apenas diferente de agora.
Em outra dessas nossas interessantes conversas intergeracionais, expliquei para a menina-neta a importância dos “orelhões”, para que ela entendesse a antiga gíria “cair a ficha” como sinônimo de entender. Sobre a fila que enfrentávamos, no bar da faculdade, quando era preciso telefonar para casa e avisar às mães que chegaríamos mais tarde. Quando a ligação era atendida, a ficha colocada no aparelho caía lá dentro e começava a conversa. Daí a gíria.
Olhos brilhando de curiosidade histórica, um tanto compadecida pela minha vivência estudantil analógica, a jovem estudante da era digital suspirou e disse: “Coitada, como é que vocês viviam sem celular?”. Falei que vivíamos bem, a vida acontecia de outra forma.
E as nossas conversas seguiram acontecendo, com seus momentos interessantes e emocionantes, enfeitadas de histórias e trocas de impressão sobre nossas diferentes realidades estudantis. Como na caminhada para ver vitrinas de lojas na cidade praiana que, vez por outra, visitamos.
Passamos por uma loja, e eu comentei que havia gostado de um par de botas, mas o preço era muito alto. Poucos metros adiante, toques de mensagens no meu celular anunciavam diversas ofertas de pares de botas, com preços melhores, em lojas que eu nem conhecia. Instintivamente, parei e olhei em volta, como num filme de suspense e ficção científica, segurando o celular, à procura do espião que devia estar nos seguindo. Mas não havia ninguém, era a tal “inteligência artificial”, sob o comando dos “algoritmos”, modernos agentes secretos que estão a serviço do combate à graça da vida.
“Coitados de nós todos, como vamos viver desse jeito, sempre monitorados?”, falei para a minha neta. E a menina de onze anos recém-feitos, como se filosofasse em silêncio, nada respondeu.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 16/6/23