A última quinta-feira foi o dia de celebrar a existência daqueles que não existem mais. Dia de luto e de saudade de alguns que viveram muito, de outros que não conseguiram viver tanto, mas que escreveram suas histórias e deixaram seus legados…
Popularizado pela Igreja Católica, mas celebrado por muitas e diferentes religiões, o Dia dos Fiéis Defuntos – tenho certeza que você nunca tinha ouvido essa expressão, a não ser que você esteja em Portugal – é uma celebração universal onde as culturas constroem tradições e rituais diferentes para expressarem os mesmos sentimentos e vivências à memória daqueles que já partiram. A maioria dos costumes é semelhante: as pessoas vão aos cemitérios, colocam flores nos túmulos, acendem velas, rezam. Nós, enquanto brasileiros, fazemos parte desse grupo. Mas há quem entenda que isso é pouco: alguns povos, por exemplo, cultuam o ritual festejando nas ruas mas sem nunca esquecer o fato de que as almas possam estar com fome…
E é sobre isso que quero abordar. A humanidade tem essa constante preocupação em ‘oferecer comida’ até mesmo àqueles que não precisam mais dela. O Japão, por exemplo, oferta arroz e algas para que as almas dos mortos sejam alimentadas. No entanto, lá, a celebração é em 15 de agosto. Na Áustria, são deixados bolos sobre a mesa numa sala aquecida para o conforto dos mortos. Na Grã-Bretanha as pessoas vão aos cemitérios ao anoitecer, ajoelham-se em frente às lápides de seus falecidos e ungem-nas com água benta ou leite. Na hora de deitar, o jantar é deixado na mesa para as almas se servirem. Na Guatemala, os mortos também não passam fome. Eles têm fiambre à sua inteira disposição. Aliás, único dia em que é preparada essa comida por lá durante todo o ano. Os hindus honram sete gerações passadas, tomam banho em rios sagrados, rezam e… oferecem comida aos que já se foram. No Haiti, a data mistura rituais católicos e vodu, uma religião de matriz africana e com o maior número de seguidores do país. A tradição – é claro – também envolve ofertas de comida e bebida para os mortos e durante os rituais, o povo entoa cantigas e toca grandes tambores com o intuito de acordar o ‘Deus dos Mortos’.
Mas há quem compreenda que não é só de comida que as almas se alimentam. Na Austrália, o Dia dos Mortos possui um alto teor de espiritualidade e por esse motivo há uma inversão da lógica ocidental: as pessoas lamentam e choram pelo nascimento dos bebês porque acreditam que os recém-nascidos vem ao mundo para resgatar seus carmas. Em contrapartida, quando alguém morre, os australianos festejam a libertação do sofrimento.
Engana-se, entretanto, quem pensa que alguma civilização possa cultuar a morte desdenhando da vida: muito pelo contrário. Existe uma ilha na Indonésia, chamada Sulawesi, onde os habitantes esgotam todos os recursos possíveis e imagináveis na luta para que a pessoa doente não morra. Mas quando isso, enfim, acontece, o que muda com relação à nossa orientação espiritual é a maneira como encaram esse período ‘de transição’. Eles transformam os velórios em grandes celebrações: isso porque o corpo ‘do ente querido’ nunca é enterrado após o falecimento (?!?!?!). Se o ‘passamento’ se deu num hospital, por exemplo, o corpo retorna para casa e inicia-se um grande ritual que duram semanas e até mesmo anos para terminar. Isso significa que os corpos dos que partiram continuam fazendo parte da família, recebendo visitas, inclusive. O defunto, chamado de “makala” – que significa “pessoa doente” – é tratado com formalina, uma mistura de formaldeído e água que faz com que a carne não apodreça. Com o tempo, isso acaba se transformando num processo de mumificação. E o mau cheiro do corpo em decomposição? Sim, ele existe, é claro, mas é atenuado com incensos de sândalo…
Voltando ao Brasil: lembre-se que esse é o último feriado prolongado de 2023…
Daniel Andriotti
Publicado em 3/11/23