Invulneráveis e Inafundáveis

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Quem me conhece sabe que esportes radicais não estão entre os meus preferidos. Até porque o tempo já retirou boa parte da minha adrenalina para esse tipo de coisa. Convites para voar de asa delta, pular de paraquedas ou de bungee jump, agradeço. Mas confesso: já voei de balão. E a sensação, posso garantir, é indescritível. No último sábado, porém, fomos acordados com uma notícia triste de um acidente que raramente acontece. Um balão com turistas pegou fogo e caiu no sul da Santa e bela Catarina, matando oito pessoas.

O leitor deve lembrar da OceanGate, uma empresa americana criada a partir do desejo de um visionário em fabricar um veículo tripulado capaz de operar debaixo d’água, porém menor e com menos autonomia do que um submarino. Para quê? Para levar pessoas aos escombros do Titanic a quase 4 mil metros de profundidade. Na época, o dono da empresa, Stockton Rush, disse em diversas entrevistas que a sua invenção, batizada de Titan, era um marco da engenharia contemporânea e, portanto, “invulnerável”. Dias depois, o Titan partiu para uma expedição levando a bordo cinco pessoas desconfortavelmente embarcadas – incluindo o próprio Rush. E nunca mais voltou. Isso porque a engenhoca não era invulnerável coisa nenhuma. Ela não suportou a pressão hidrostática do mar em grandes profundidades e implodiu, praticamente sem deixar vestígios de algo que pudesse ser resgatável.

A tragédia tem ainda essa ironia histórica: um século depois, o Titan partiu rumo ao mesmo destino do Titanic. E encontrou exatamente o mesmo fim, no fundo do mesmo Oceano Atlântico. O Titanic, construído pelo estaleiro britânico Harland & Wolff para a companhia White Star Line, partiu de Southampton, na Inglaterra, em 10 de abril de 1912, com destino a Nova York. Cinco dias depois, colidiu com um iceberg durante a madrugada e naufragou em poucas horas. A bordo estavam mais de 2.200 pessoas; das quais 1.500 perderam a vida numa das maiores tragédias marítimas da humanidade.

Essas histórias representam mais do que um desfecho trágico: ambas nasceram sob a mesma ilusão da invulnerabilidade. Na crença de que certas criações humanas são imunes ao fracasso, o Titanic foi celebrado como “inafundável” e o Titan, promovido como “invulnerável”. Em ambos os casos, a confiança cega caiu nas graças da ilusão, mas se sobrepôs ao bom senso. E os resultados foram igualmente fatais.

Esse é um viés comum entre grandes líderes e inovadores: confundir coragem com imunidade ao erro. Mentes brilhantes fracassam quando começam a acreditar que são infalíveis, mesmo quando confrontados por laudos técnicos ou pareceres de especialistas. No caso do Titan, engenheiros alertaram para os riscos do uso de materiais não testados e da ausência de certificações formais. Nada disso foi levado a sério. No Titanic, advertências sobre a insuficiência de botes salva-vidas e avisos sobre a presença de icebergs na rota foram sumariamente ignorados como se o que estava abaixo da linha d’água não pudesse representar uma ameaça real.

Há um documentário na Netflix onde ex-funcionários da OceanGate relatam que o CEO da empresa cultivava uma “cultura tóxica”, que rejeitava questionamentos técnicos, promovia uma visão messiânica do projeto e não tolerava quem discordasse. A destruição do Titan e do Titanic tem uma origem comum: a crença de que tudo o que criamos é infalível mesmo quando sinais de algum fracasso já emergem – como icebergs visíveis na linha do horizonte – e são ignorados até o último instante.

A verdade é que riscos não se derretem diante do marketing. Invulnerabilidade é ilusão. Tudo é vulnerável: a asa delta, o bungee jump, os transatlânticos de luxo, os submersíveis de fibra de carbono, os balões de turismo… por mais sedutoras que sejam suas embalagens para presente.

Daniel Andriotti

Publicado em 25/7/25

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