Um amigo que viveu na Europa, ao retornar para o Brasil resolveu comprar uma casa na serra gaúcha. Lá, ele convivia com a neve na maior parte do ano, lógico. Mas aqui, nunca. Eis que, neste último inverno – cá entre nós bem rigoroso – saiu à rua num dia pela manhã e… lá estava ela: a neve. Pensou: “vou fazer o que sempre fiz no velho continente”. O resto, ele mesmo relata:
– Saí para a rua e fiz um boneco de neve. Meia hora depois, uma feminista passou e me perguntou por que não fiz um boneco com feições e traços femininos? Imediatamente transformei o meu boneco numa mulher de neve. Ela continuou. Disse que aquela vassoura que usei como sustentação trazia duas conotações: a primeira, representando a submissão das mulheres como empregadas domésticas. E a segunda, a de uma bruxa. Nisso, uma vizinha fitness reclamou que o perfil voluptuoso da minha mulher de neve era uma afronta àquelas que tinham um corpo malhado.
Uma hora mais tarde um casal gay que passava pelo local me enquadrou como homofóbico e protestou por eu não ter feito dois homens de neve e de mãos dadas. Tentando me refazer da enxurrada de críticas, percebi a aproximação de pessoas veganas, com faixas e cartazes em defesa da cenoura que coloquei no nariz da minha criatura, uma vez que aquilo se tratava de um alimento de alto valor e, portanto, não deveria estar ali. No entanto, esse grupo foi ofuscado por um muçulmano do outro lado da rua: ele exigia que a minha mulher da neve vestisse burca.
Enfim, chegou a polícia. Ufa!!! Ainda bem. Mas para minha surpresa, os policiais traziam uma denúncia de racismo e discriminação contra mim pelo simples fato da minha criatura ser… branca como a neve. E ainda, buscaram informações junto à Interpol para saber se pertenço a alguma organização terrorista financiada pelo capital estrangeiro. Foi quando estacionou um veículo de uma emissora de TV. Fui parar no noticiário como um suspeito, terrorista, racista, homofóbico e delinquente. A essa altura as redes sociais já estampavam minhas fotos ao lado do boneco (ou da boneca, nem sei mais) de neve e, metade dos comentários eram de manifestantes de extrema direita garantindo que viram um button escrito “Sem Anistia” no peito da criatura, e a outra metade – integrantes da esquerda raivosa – afirmando que sou um liberal, integrante de uma elite capitalista e opressora. Ativistas de uma ONG me acusaram de poluir a neve com resíduos não-degradáveis e, por fim, chegaram os religiosos exigindo a minha decapitação pois só quem pode dar forma às criaturas é Deus.
É evidente que essa é uma história fictícia. Mas é com esse festival de aberrações e intolerâncias que vivemos os dias atuais. Por mais absurdo que seja tudo isso que narrei aqui, a probabilidade do enfrentamento por quase nada, é enorme. Muitas delas estão acontecendo a cada minuto, sem que percebamos, por coisas bem mais simples do que um boneco de neve.
Temo pelo caminho onde tudo isso poderá nos levar. Principalmente em períodos eleitorais como os que se avizinham, de acirradas e extremas polarizações.
Daniel Andriotti
Publicado em 5/9/25