Deixava toda a família em silêncio, aquele primo que viajava como nenhum de nós sonharia fazê-lo. Suas vivências em pagos estrangeiros eram sempre muito interessantes, sabia contá-las como ninguém mais nos almoços lá de casa. Algumas eram dramáticas, como uma vez que, apenas por discordar do atendente de uma confeitaria parisiense, que era fanático religioso, foi empurrado porta afora, caindo estatelado na calçada sem direito a retornar. E quando viu que todos nós estávamos pesarosos com o que lhe acontecera, transformou o final do drama em comédia: “Sabem do melhor, eu não deixei cair o doce; e comi ali mesmo, sentado no meio-fio, só para ser desaforado com o agressor!”. E todos rimos muito.
Outra de suas bravatas internacionais aconteceu no metrô londrino, com seus inúmeros cartazes anunciando shows. Para nos contar, ficou em pé, para chamar a nossa atenção em cem por cento, e deu início ao seu relato teatralizado. Contou que se deparou com o cartaz que anunciava um baita show, com sambista brasileiro e sua banda. E os ingressos não eram baratos. Ficou admirado, o meu primo viajante, com o destaque dado a um artista do qual ele nunca ouvira falar. Ficou alguns minutos ali parado, atento à foto daquele brasileiro tocando guitarra que ele jamais vira, puxando pela memória para ver se conseguia descobrir quem era o tal músico exposto no cartaz.
De repente, um homem negro, alto, parou ao seu lado e perguntou, em bom português com sotaque carioca: “Vai no show?”. E meu primo, alegre por ouvir a língua materna, respondeu de pronto: “Não sei quem é ele”. E o homem treplicou: “Sou eu. Muito prazer, Jorge Ben”, e estendeu a mão para o cumprimento. Ganhou um convite cortesia, foi ao show e adorou.
A melhor de todas as suas histórias, porém, foi aqui mesmo, em Porto Alegre, nos tempos de cinemas “de calçada”, como o Victoria, o Imperial, o Baltimore, e tantos outros.
Cinéfilo assumido, parou em frente ao cinema Baltimore, na Avenida Osvaldo Aranha, para conferir o cartaz de um lançamento de Hollywood. Era 1978, e havia um astro despontando, prometendo fazer carreira exitosa nas grandes telas. Meu primo, então, resolveu ler a sinopse que estava exposta na calçada.
De repente, para ao seu lado um jovem boa-pinta e puxa assunto, em um português sofrível, carregado de sotaque americano, típico de quem está aprendendo nosso idioma pátrio. E lhe pergunta: “Você vai ver o filme?”. Meu primo respondeu: “Hoje não, tenho que dar aula. Sou professor no Colégio Parobé. Conhece?”.
E o rapaz, constrangido, lhe disse, em inglês: “Não, eu não sou daqui, moro nos Estados Unidos. Namoro uma garota de Bagé. Só parei para ver o cartaz do meu filme”. Meu primo, como bom gaúcho, estendeu a mão para dar-lhe as boas-vindas, cumprimentá-lo e se apresentar: “Seja bem-vindo ao Rio Grande do Sul. Muito prazer, Décio Andriotti”. E a resposta foi inacreditável: “O prazer é meu, sou o Richard Gere”, apontando para sua imagem no cartaz.
Meu primo faz muita falta, com suas histórias interessantes contadas como ninguém mais sabia fazê-lo. Nos almoços lá de casa, encenava e surpreendia, como nos casos do confeiteiro, do cantor e do ator principiante, três das suas incontáveis histórias.
Cristina André
Publicado em 11/7/25