Caro leitor, ultimamente você deve ter lido e ouvido repetidas vezes o termo ‘linguagem neutra’, bastante utilizada por alguns ministros do governo Lula. Trata-se de um fenômeno social, político e linguístico vinculado às comunidades não binárias. Para quem não sabe, não binárias são aquelas pessoas que não se identificam como pertencentes a um único gênero e que, portanto, não se limitam ao masculino ou feminino. Até aqui tudo certo.
A linguagem não é um mero reflexo da sociedade. Isso é fato. Na fala coloquial a a linguagem neutra até pode representar uma forma de integração. Mas na minha modesta opinião, ela não tem nada de inclusiva conforme é o argumento de quem a utiliza. Por essas e outras, a hipocrisia do politicamente correto me incomoda. Explico: para incluir 1,2% da população que se considera não binária – e o principal termo utilizado nesse contexto é o ‘todes’ – são excluídos, por exemplo, mais de 32 milhões de brasileiros que sofrem de dislexia, um distúrbio de aprendizado, que afeta leitura, soletração e escrita. Qualquer alteração da linguagem vai dificultar ainda mais o aprendizado dessas pessoas. É o mesmo caso dos deficientes auditivos: a linguagem neutra também prejudica a leitura labial de pessoas surdas. Nesse caso, estamos falando da exclusão de mais 10,5 milhões de pessoas. E os deficientes visuais? São outros 6,5 milhões excluídos em função do material editado em braile ou softwares de leitura. Logo, esse tipo de linguagem mais exclui do que inclui.
A esquerda liberal norte-americana, criadora das iniciativas políticas em torno da linguagem neutra, conseguiu facilmente colocar em prática esse tipo de fluência verbal, graças à estrutura da língua inglesa, onde a neutralidade é de fácil aplicação. Exatamente o contrário do que acontece nesse nosso Brasil de um português complicadíssimo. Nossa língua já é binária, toda ela atravessada por gênero, seja em substantivos, adjetivos ou pronomes, completamente diferente do que ocorre com a língua norte-americana. Paralelo à dificuldade de aplicação, criamos um tipo de problema ideológico perigoso. A linguagem neutra no português é incapaz de ser aplicada no cotidiano, enfraquecendo o potencial político e suas iniciativas. Ao contrário do inglês, onde já é possível observar estratégias de aplicação muito além das fronteiras acadêmicas e suas linhas de pesquisa de gênero. Como o foco da neutralidade da língua inglesa é basicamente o uso de pronomes, as iniciativas são bem aplicáveis, incluindo em políticas públicas.
“Todes”, “menine” e “amigues” são exemplos dessa linguagem cada vez mais comum como uma forma de retirar a predominância do gênero masculino da língua portuguesa. Há consenso sobre isso? O pronome neutro tem futuro? Entraremos ‘todes’ em consenso? Gênero linguístico não é gênero político. Da mesma forma que substantivos como “aluno” não se refere necessariamente a homem e características masculinas, “lua” não indica que esse astro é uma mulher ou tenha alguma conotação feminina. Se “a lua é bela” e o “sol é quente” não existe aqui nenhuma premissa política de fundo. A confusão entre gênero linguístico com gênero político dificulta mais ainda a busca por soluções eficazes no terreno da linguagem. Daí tudo vira o famoso “jogar para a torcida” com todas as energias concentradas no alvo errado.
Eu não tenho problema algum com os não binários. Pelo contrário. E não tenho o menor interesse em ofender o caráter dos defensores da linguagem neutra, como normalmente acontece nas redes sociais. Mas me agrada a opinião da professora Cíntia Chagas, autora de dois best sellers sobre a língua portuguesa: “dizer boa noite a todos e a todas é uma redundância. Dizer boa noite a todes é uma imbecilidade. Uma aberração linguística”.
Daniel Andriotti
Publicado em 17/3/23