Há uma frase na música “Saudosa Maloca”, um clássico da MPB composta por Adoniran Barbosa, que diz: “Deus dá o frio, conforme o cobertor…”
Pois então: bairros do Berço da Revolução Farroupilha, assim como a cidade vizinha que, num passado recente também pertenceu a Guaíba, foram devastados e varridos pela enchente de maio, a pior tragédia que a natureza provocou em todos os tempos nesse continente de São Pedro. Num cenário de lares e corações dilacerados, uma infinidade de colchões, sofás, móveis e eletrodomésticos dispostos pelas ruas, pelas calçadas, pelos canteiros…
Todas as pessoas que tiveram suas vidas afetadas – e que deixaram suas casas quando a água começou a subir – imaginaram que em 3 ou 4 dias estariam de volta, limpariam suas coisas e a vida seguiria seu curso normal. Só que não. Primeiro porque bairros como a Alvorada, a Florida, parte do Centro e o Engenho, em Guaíba; e em quase todos os de Eldorado do Sul, a água suja ainda segue como uma piscina a céu aberto nas ruas e nos pátios. Segundo, porque assim como na Cohab e Santa Rita, ‘as suas coisas’ não existem mais. Hoje, milhares de pessoas ainda estão alojadas em abrigos improvisados ou casas de parentes e de amigos. Diferentemente do que aconteceu em enchentes anteriores, em muitas áreas o retorno à normalidade está sendo muito mais lento do que o esperado, prolongando a crise humanitária que vive o Estado.
Três semanas depois, de acordo com a Defesa Civil do Rio Grande do Sul, cerca de 580 mil pessoas seguem desalojadas e, destas, 70 mil ainda estão em abrigos. Nesses locais, as regras de convivência para garantir um mínimo de segurança dos abrigados, associada à falta de autonomia, de liberdade e de privacidade de toda aquela gente, somadas ao tempo ocioso e a indecisão sobre o futuro faz com que aumente a tensão entre as pessoas, provocando crises de ansiedade e desgastando ainda mais os dedicados voluntários. Por falar em voluntários, à medida que o tempo passa eles também vão se escasseando.
Quem passa por Eldorado do Sul no trajeto para Porto Alegre percebe que o trauma causado pelo aguaceiro nos moradores de Guaíba talvez seja pequeno em relação aos da cidade vizinha. Por motivos diversos – em especial o medo de ser saqueado naquele pouco que lhes restou – algumas pessoas se negaram a ir para alojamentos. E estão ali, no acostamento da BR-290 em improvisadas barracas de lonas pretas, azuis e amarelas. Cada uma alojando 5…, 10…, 15 pessoas, incluindo crianças que não fazem a menor ideia do que é uma enchente ou do porquê estão ali naquelas condições. A parte da frente da barraca tem apoio no asfalto, mas o restante é suportado por estacas de madeira barranco abaixo, como se fossem palafitas. Lá dentro, colchões e cobertores velhos. Ao redor, fardos de água, de comida, sacos de roupas e outros mantimentos. Vi, ao longo do trajeto, um único banheiro químico e uma fila constante para acessá-lo. O banho é numa outra barraca de lona, que mede 1 metro quadrado, sem iluminação. Chuveiro não há. A higiene é com a água em bacias e potes. E nos últimos dias, para piorar a situação, a temperatura despencou no sul do Brasil. A única certeza no universo daquelas pessoas é a incerteza de quando e como irão retomar a chamada ‘vida normal’.
Vivemos um momento diferente do pós-covid, onde se desenhava um chamado ‘novo normal’. Um dos argumentos que nos impulsiona a reagir nessas horas é aquele que diz ‘tivemos apenas perdas de coisas materiais’. Mas na próxima página da vida, percebemos que a maioria das coisas materiais que se foram tinham sentimentos, lembranças, cheiros, cores. São fotos, livros com dedicatórias, mimos presenteados por pessoas que não já estão mais aqui. E isso, definitivamente, jamais será tratado como um novo normal…
Como diria Adoniran Barbosa, “saudosa maloca, maloca querida… dim, dim, donde nós passemos, dias feliz de nossa vida…”
Daniel Andriotti
Publicado em 31/5/24