O tempo, que passeava sem compromisso nas páginas dos antigos calendários da infância, não era mais o mesmo. Ansioso, quase voando em dígitos, nem as horas para nós.
E para esta minha vida adulta, saudosa dos relógios da casa materna, exímios em esticar os dias e as noites, nada restava a não ser o enfrentamento. Corajosa e segura de mim, decidi que era preciso inverter movimentos, cometer desobediência explícita à nova ordem imposta pelo tempo, ansioso e nem as horas para nós. Decretei férias.
No despertar natural, sem o som estridente de toques pré-agendados, a primeira atitude, o grande passo dado a caminho da desconstrução definitiva do emaranhado de agendas. Permitir à luz do dia o cumprimento do seu dever, acordar com avisos luminosos do Sol, olhos se abrindo outra vez para o aconchego da existência. Nem as horas para o tempo.
No silêncio da manhã recém-chegada, perfume de café se espalhando por toda a casa, livro aguardando a leitura sem pressa, me dou conta de que nada precisa ser feito que não seja simplesmente estar de bem com a vida.
Mais tarde, sem horários a cumprir, quando der vontade, caminhar pela praia, pés descalços na areia, reencontrando imagens inexplicáveis em nuvens passageiras. E na ousada liberdade das notícias instantâneas e seus comentários, o mergulho nas águas claras do pensamento.
Conversas compartilhando amenidades, atentos ao mamão saboreado e suas pequenas sementes que têm história, cultivo especial quase desaparecido. Os planos mais importantes, nestes momentos, dizem respeito a shows de música, jogos de futebol, passeios e viagens.
No caminho de volta, parada no local preferido, acomodados a uma pequena mesa para bebericar e petiscar, visual dos mais belos se descortinando naturalmente. E a sábia conclusão de que era mesmo disso que precisávamos, de falas presenciais sem consultar aplicativos.
Quando a tarde dá sinais de cair no horizonte, preparar um almoço à moda dos tempos calmos; tardio, ao nosso jeito. Refazendo gestos tranquilos, imitando gerações de antes, colocamos, definitivamente, o ponto final à pressa e ao nervosismo que se alastraram no ano findo.
Varanda se iluminando de luar e estrelas, recordando boas histórias de vida, de momentos compartilhados, acontece a reconquista do tempo, aquele que se mostrava ansioso, quase voando em dígitos, nem as horas para nós.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 20/1/23