O Dilúvio do Século XXI

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Em 1941, a manchete de capa do jornal “A Época”, com data de 17 de maio foi: “O Rio Grande do Sul vive os dias mais angustiantes e catastróficos da sua história”. E na linha de apoio: “As inundações assumiram proporções verdadeiramente avassaladoras”. Repito a data: 17 de maio de 1941…

Oitenta e três anos depois o povo gaúcho, conhecido internacionalmente como “forte, aguerrido e bravo” está abatido, desolado, destruído por uma “ímpia e injusta guerra”, sem precedentes, que não teve tiros nem confrontos. Não há como escrever ou descrever a sensação de ter que abandonar a própria casa, no fim de uma madrugada, com água gelada pela cintura, num barco da incansável Defesa Civil, deixando para trás todos os seus pertences e alguma esperança, ainda que pequena. No barco, a família, algumas poucas peças de roupa e o cachorro.

Moro no Loteamento do Engenho há 19 anos. Alguns vizinhos há bem mais tempo do que eu. Bem mais. Em todos esses anos, a água de qualquer enchente jamais havia ficado empossada na minha calçada. Há 13 dias, minha casa, meu carro, roupas, eletrodomésticos, objetos pessoais estão todos submersos a uma profundidade que oscila entre 60, ora 80 centímetros, ora um metro.

O Engenho virou uma grande piscina a céu aberto, de ponta a ponta. E segue assim até o momento em que escrevo esse texto. Foi triste. Está sendo muito triste. Mas na Cohab, Santa Rita, Eldorado do Sul, Canoas, Muçum, Roca Sales, Lajeado e alguns bairros de Porto Alegre foi pior. À medida que a água vai baixando percebe-se o cenário desolador. Semelhante aqueles que só vemos pela TV em países do oriente médio devastados pela guerra civil.

O Rio Grande do Sul virou – nos últimos dez dias – um território de cidades alagadas, ruas inundadas, casas destruídas e centenas de pessoas implorando por resgates, por alojamentos, por roupas, colchões, cobertores, comida. Histórias que vão desde a família onde seus integrantes morreram abraçados até cavalos sendo resgatado de um telhado de uma casa quase coberta pela água. Segundo a Defesa Civil, até o momento os mortos chegam a quase uma centena. Outras 111 estão desaparecidas e 291 estão feridas em decorrência do que podemos caracterizar como a maior tragédia da história do continente de São Pedro. Logo ele, o padroeiro, o primeiro papa, o santo que faz ‘a gestão’ das chuvas. Os números certamente são muito maiores, já que metade do estado está debaixo d’água. Os reais impactos, infelizmente, ainda são desconhecidos.

A preocupação com os saques nas casas abandonadas é sufocada pela solidariedade do povo brasileiro – há que se reconhecer, isso nunca teve fronteiras – como um fator de motivação para quem precisa se manter e recomeçar. Dos governos municipais se vê muito empenho, muita luta, muita determinação em atender a todos dentro das suas possibilidades e limitações, pois é nas cidades que a vida acontece e que a tragédia se propaga. Das esferas estadual e federal, até que seja provado o contrário, chegam promessas, promessas e mais promessas. “Estamos liberando isso e aquilo, bilhões em recursos…”, que ficam esbarrando nas burocracias anti-corrupção e vão sumindo, aos poucos e à distância, da nossa visão de cidadãos submersos e pagadores de impostos.

E diante de tudo isso, surge a nova profissão deste século: a do “achologista”; profissional formado pela universidade do Facebook com especialização em Instagram e pós-graduação em TikTok. Função: comentar o que não conhece, absorver sem pensar criticamente, influenciar negativamente, obesidade mental, contestar opiniões profissionais dizendo que viu tal coisa na internet, dar mentoria do que nunca fez e exigir dos outros o que ele mesmo nunca viveu. E, nas horas vagas, propagar aos seus grupos de WhatsApp áudios sensacionalistas enviados pelo primo de um amigo que é vizinho da irmã de alguém que trabalha na Defesa Civil…

Daniel Andriotti

Publicado em 17/5/24

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