O Ciclo do Contraditório

0
COMPARTILHAMENTOS
47
VISUALIZAÇÕES

O século XXI, quando aqui chegou há pouco mais de 23 anos, chegou a tempo de ‘observar’ que algumas famílias mantinham um estranho hábito: as pessoas sentavam-se juntas à mesa para as refeições. Pais e filhos, à noite, até dividiam o mesmo sofá da sala para assistirem, juntos, à novela das oito que começava às nove.

No entanto, parece que o jogo virou, não é mesmo? Passadas duas décadas, o novo século saiu do casulo, apresentou as suas armas e mostrou a que veio: ao invés de talheres ou o controle remoto da TV nas mãos das pessoas dentro de uma mesma casa, apenas telefones celulares. Por falar nele, perdê-lo é praticamente como que perder a vida. Nada mais fará sentido sem um smartphone. Fumar, beber e frequentar festas rave também é uma obrigação. Caso contrário, você estará na contramão do status quo da maioria. O sexo virou uma banalidade institucional. Ser hipócrita é etiqueta, o golpe é moda. Tudo é relativo. Valores são negociados. Às vezes por uma insignificante cifra de criptomoedas. Débito ou crédito? CPF na nota? Aproximação?

Hoje, os banheiros e seus espelhos tornaram-se estúdios para as fotos a serem postadas no Face ou no Insta. No entanto, é importante que seja utilizado o banheiro certo, adequado aos mais diversos gêneros que incluem ou excluem os obsoletos masculino e feminino. Agora somos ‘todes’. Neste século raso e superficial, patético mas real, o serviço de tele entrega de pizza tem que chegar mais rápido do que a ambulância. Mas atenção: não pode ser uma pizza qualquer. Ela precisa ter sido sugerida por um influencer com mais de um milhão de seguidores e que esbanje felicidade o tempo todo. Virou um período em que as pessoas respeitam terroristas e criminosos mas zombam da polícia. Homens e mulheres temem muito mais uma gravidez do que um HIV.

A linguagem digital do internetês desse século XXI por vezes é incompreensível. O velho e surrado português – que nunca foi devidamente praticado como deveria – virou um dialeto de gírias e de palavrões. A escrita, apenas emojis, gifs, memes, símbolos e abreviações num total desserviço aos profissionais que alfabetizam. A risada é kkkkkkkk. Adolescentes são capazes de desistir dos pais em troca do amor virtual. Talvez, por isso, a vida se tornou um relacionamento sem obrigações e o único compromisso realmente importante é com a atualização das redes sociais. As roupas deste século passaram a decidir o valor da personalidade. As pessoas se esqueceram de cuidar do espírito e da alma vazia, mas veneram o culto ao corpo. Esse sim, parece ter mais valor do que um diploma universitário. A foto na academia recebe mais curtidas do que uma imagem de alguém nos bancos das universidades.

Mas nem tudo está perdido, caro leitor: convivência não é sinônimo de tolerância. Convivência é um processo, uma conquista a ser construída, uma espiral de encontros com diversidades, diferenças e criações. É assim que se supera as desigualdades. Mesmo que o século XXI não seja para amadores você não é obrigado a se moldar às regras que ele dita. Basta saber jogar com a razão, ter alma, valores sólidos, convicção e desapego de tentar ser quem não é para pertencer a vida social mundana.

 

* * *

Domingo tem o maior clássico do mundo. Um jogo de medíocres na boca da noite. Para fechar o final de semana e entrar na segunda-feira em depressão. Gre-Nal, já diriam os especialistas, é para arrumar ou destruir a casa. Mas é sempre bom lembrar que a reconstrução é difícil, dura, amarga e cara.

 

Daniel Andriotti

Publicado em 19/5/24

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *