A regra é clara. Em tese, somente duas coisas incomodam a performance de um jogador de futebol profissional: a primeira, lógico, é o dinheiro. Salário atrasado, premiações, direitos de imagem e até mesmo aquela pontinha de ciúme pelo fato de um colega de vestiário – tido como craque – ganhar dez vezes mais do que a maioria do grupo. Há quem diga que só o dinheiro os incomoda. Mas eu defendo um segundo calo na chuteira: a vaia. Já escrevi aqui outras tantas vezes que eu sou um defensor incondicional da vaia. A vaia, no futebol, é a voz coletiva do torcedor. Ela é o termômetro que mede a relação entre quem está na arquibancada e quem está dentro do campo.
A vaia já me fez ser criticado por muitos amigos e até mesmo por colorados que nem conheço. Nesse caso é aquele sujeito que teve o azar de ficar ao meu lado no estádio quando a ‘coisa não está boa’. E isso ocorre, muitas vezes, antes mesmo do jogo começar. Basta eu discordar da escalação deste ou daquele jogador anunciado pelo sistema de alto-falante. Integrantes de torcidas organizadas já me confidenciaram que quando a fase é nebulosa ou o jogo é ‘de risco’ e alguns pernas-de-pau estão ‘na mira’ da torcida, a própria direção ‘orienta’ que a ‘charanga’ fique fazendo barulho o tempo todo com o objetivo de minimizar o ‘desprezo’ do torcedor por algum atleta. Ou até mesmo pelo time todo, dependendo da atuação ou do resultado…
Com a indefinição sobre a volta da torcida aos estádios, a situação permanece confortável para jogadores e dirigentes. Mais ou menos, né? Recentemente vimos episódios tensos envolvendo os ônibus que transportavam as delegações da dupla Gre-Nal. Mas dentro dos estádios vazios, malandramente os times que jogam em casa adotaram o sistema ‘torcida fake’: um disk jockey fica colocando no sistema de som aqueles cantos de incentivo – normalmente criados pelas abomináveis torcidas organizadas – além de aplausos, gritos de gol e até o tradicional “uuuuhhh” quando a bola passa rente a trave. Isso torna muito cômoda a situação para o time que joga em casa porque o DJ contratado pelo clube jamais vai colocar um som de vaia para passes errados, para falta de empenho, para ‘corpo mole’ ou para ruindade explícita deste ou daquele jogador.
Então vejamos a atual situação do futebol brasileiro: o atleta entra em campo, jogue bem ou jogue mal será sempre aplaudido pelo sistema de som. Seja qual for o resultado do jogo, vai sair do estádio sem ser importunado pela pressão de alguns torcedores, entrar em seu mega carrão importado e ir embora na mais absoluta tranquilidade, sabendo que ao final do mês seu salário de seis dígitos antes da vírgula estará na conta bancária. Isso explica, em tese e sobremaneira, a qualidade duvidosa da maioria dos times desse primeiro turno do campeonato brasileiro da série A.
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Desde 1835, esse é o segundo setembro mais trágico da história para o melhor, mais aguerrido e pouco modesto povo do mundo: o gaúcho. Setembro é aquele mês em que se comemora a nossa rebeldia mesmo que derrotada. De novo, sem desfile – há controvérsias – sem rodeios, sem acampamentos, sem tertúlias, cantorias, fandangos, sem o mate na cuia que passa de mão em mão, sem as intermináveis churrascadas cujas sobras darão origem ao tradicional arroz-carreteiro. É cruel para o índio mais queixo duro e até para o gaúcho de apartamento, aquele que de outubro a agosto veste jeans, dança funk e mal sabe diferenciar um cavalo de uma ovelha. Mas quando chega setembro, encarna o espírito de Sepé Tiarajú, declama Jayme Caetano Braun e não pode ver um cabo de vassoura jogado ao chão que até arrisca uns passos de chula.
Vai-te embora de uma vez por todas, Covid. Ou iremos te despedaçar num talonaço de adaga.
Daniel Andriotti
Publicado em 24/9/21