Há uma música dos Paralamas do Sucesso que se chama “Perplexo”, lançada em 1989 no álbum Big Bang. Alguns versos dessa música podem não fazer muito sentido aos mais jovens, mas há 35 anos, quando a canção foi gravada, resumia bem a situação do povo brasileiro: “Eu vou lutar/ Eu vou lutar/ Eu sou Maguila, não sou Tyson”…
Enquanto se surpreendia com as recorrentes pancadas econômicas impostas pela reta final do governo Sarney, Herbert Vianna reconhecia que ao cidadão brasileiro de classe média/baixa só restava ser resiliente, tal qual um pugilista encurralado no canto do ringue. Fácil era a vida do norte-americano que derrubava adversários por nocaute no primeiro round.
Adilson “Maguila” Rodrigues morreu no mês passado, de tanto soco que tomou – e não se trata de uma figura de linguagem. Sofrendo há anos de uma demência decorrente dos repetidos golpes na cabeça, a chamada “síndrome do pugilista”, vivia um vácuo equivalente à obscuridade dos seus tempos de pedreiro. No imaginário popular, permaneceu somente o lutador folclórico, sergipano simples de sotaque nordestino e frases pitorescas; e não aquela imagem do desportista de relativo sucesso por algum tempo. Uma curiosa semelhança com o próprio país que, a despeito de alguns avanços, ensaiava desde aqueles tempos voos jamais atingidos rumo à civilização, restando apenas a galhofa como desalento.
O que a música ‘paralâmica’ não previa era que os EUA se veria refletido também na trajetória de seu eterno supercampeão dos pesos pesados. No ano seguinte ao lançamento da música, Mike Tyson perderia o título mundial para um lutador desconhecido e, daí em diante, sua carreira ia ladeira abaixo, começando por uma condenação pouco convincente de acusação por violência sexual. Preso durante seis anos, foi devolvido aos ringues numa disputa ‘meio marmelada’ para, assim, ser eternizado na infâmia ao morder a orelha de um adversário. Um paralelo perfeito com a América do final do século 20 e início do 21, envolta em escândalos sexuais, eleições suspeitas, derrotas para adversários caricatos e arrogância bélica descarada (ilustrada na invasão do Iraque). Para cada tropeço de Tyson houve um equivalente nocaute americano em matéria de puritanismo, vigarice ou incompetência.
Diferente de Maguila, que caiu para não se reerguer, Tyson sobrevive como lenda e subcelebridade, ostentando um eterno cinturão simbólico. Parecido, aliás, com o que exibe os Estados Unidos, ainda a maior superpotência do mundo, a despeito das máculas sucessivas e prestes à repetição: menos de quatro anos depois do seis de janeiro, Donald Trump volta ao poder. Para o bem e para o mal. Hoje, são os norte-americanos, a exemplo de um truculento Tyson enfiando os dentes na orelha esquerda de Evander Holyfield, quem mais causa perplexidade no mundo. Mas ninguém há de subestimá-los, nem deixar de lhes levar a sério.
Ao contrário do Brasil, cada vez mais parecido com o simplório Maguila no seu auge. Sobre os perigos dos danos cerebrais da sua atividade, dizia não temer a loucura, pois “não deve ser pior do que passar fome”. E tirado dos canteiros de obra para os tablados de boxe, resumia assim o que a vida lhe impusera: “Ou a gente sobe no ringue para bater nos outros ou volta para a vidinha de João de Barro”.
Ao brasileiro comum, mesmo distante daquele 1989, só cabe lutar ou lutar. Mas o nocaute é iminente…
Danielç Andriotti
Publicado em 13/12/24