Kombis de Asas

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“Voar é com os pássaros”, dizemos, para definir nossa situação de seres atados à terra. Não, não voamos. Viajar de avião, de helicóptero, voar de balão, planar de asa delta, não é voar. Voar é com os pássaros.

Andei de avião pela primeira vez aos 29 anos, nas férias de 1996 – e a primeira vez a gente nunca esquece. Tarde para os dias atuais, mas cedo para quem jamais havia saído do Rio Grande do Sul. Nem de carro. Era um vôo entre Porto Alegre e Salvador, com escala no Rio, num 737 da Varig. Vôo tranquilo e sereno. Tanto na ida quanto na volta. De lá para cá, foram outras tantas dezenas, talvez centenas de vezes, todas a trabalho. Algumas para fora do Brasil, inclusive.

Em abril deste ano andei, pela primeira vez – e de novo, a primeira vez a gente nunca esquece – num desses aviões ATR’s, da empresa Azul, entre Campinas (SP) e Três Lagoas (MT). Não achei ruim. Lógico que é muito diferente de um Boeing ou de um Airbus, mas não chega a ser ‘uma Kombi de asas’ como muita gente comenta. Trata-se de uma aeronave menos confortável, barulhenta, que demora para ganhar altitude após a decolagem, que voa mais baixo, mas que me pareceu segura. Em agosto, um desses modelos, só que pertencente à empresa Voepass e bem maior que o modelo que andei, caiu no interior de São Paulo por motivos, até agora, ignorados. Sessenta e duas pessoas que estavam a bordo, entre passageiros e tripulação, não voltaram para casa.

Tenho um amigo – daqueles que num período de dois ou três meses voa mais do que já voei em toda a minha vida – que costuma dizer: “Há dois tipos de pessoas que andam de avião. Os que tem medo e os que mentem que não tem”. Os aviões reúnem um bando de gente que, por horas a fio, irá respirar o mesmo ar ruim, a mesma comida na mesinha apertada e uma crença quase inconcebível de que os aviões voam. Nenhuma explicação física é capaz de satisfazer as pessoas comuns, como eu. Ao menos para nós, meros mortais, é absolutamente absurdo pensar que um imenso charuto de metal, mais pesado que o ar, impulsionado por motores movidos à explosão e alimentados por querosene, inventado por um brasileiro, possa voar a 11 ou 12 mil metros do chão a uma velocidade de 800 quilômetros por hora, levando centenas de pessoas, malas, bagagens..

Mas é assim que, bastante animados, por um intervalo de tempo que – para a Europa ou para a Ásia pode chegar a 14 ou 20 horas – reunimo-nos ensardinhados em fileiras para compartilhar este período no qual não se terá um fuso horário preciso, uma temperatura real e apenas o céu e as nuvens como grandes testemunhas. Dividimos odores e a expectativa em chegar a outro aeroporto, de outra cidade, outro estado, outro país, outro continente. Às vezes, faz mais calor ou mais frio, um bebê chora, alguém reclama, a comissária sorri. Mas, em geral, reina algum silêncio – ou porque nossos ouvidos parecem entupidos em função da pressurização – até que se perceba uma sensível e despreocupada desaceleração dos motores e aquele som quase inaudível e incompreensível do comandante murmurar algo como “atenção tripulação, preparar para pouso”. O alívio é inegável.

Definitivamente, voar é com os pássaros.

 

Daniel Andriotti

Publicado em 27/9/24

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