Gaúchos e gaúchas de todas as querências já sabem: de dezembro a março o seu lugar é na Freeway. Não importa se você mora na zona sul de Porto Alegre, na área rural de Tucunduva ou em São Borja na divisa com Santo Tomé. No verão gaúcho, todos os caminhos levam ao litoral. Um dia isso foi chique e estiloso. Hoje, nem tanto….
Mesmo diante de uma interminável pandemia, a gauchada, em peso, segue ocupando a Freeway nos finais de semana a caminho do litoral. Isso nos ajuda a compreender, na prática, a Teoria da Relatividade. A percepção do tempo muda a partir do seu lugar no espaço. Porto Alegre e Torres – só para não sair do Rio Grande do Sul, por exemplo – estão separadas por algo em torno de 180 quilômetros que, sendo otimista e em circunstâncias normais, podem ser percorridos de carro em duas horas e pouco, considerando uma média de 90 km/h. Nos dias que antecedem o final de ano e o Carnaval, esse mesmo percurso pode levar de quatro a dez horas.
Quem fica na cidade, nesse intervalo em que todos os outros estão na Freeway, pode almoçar, ir ao shopping, dar uma passada numa livraria, tomar um café… enquanto a turma do calção e do chinelinho, dentro dos carros escaldantes percorreram algo como… 50 quilômetros. Uma vez na praia, você pode finalmente se livrar do seu complexo de culpa pequeno-burguês e se sentir um flagelado da seca. Suado, com a máscara descobrindo o nariz, você anda na areia quente carregando guarda-sol, cuia, bomba, erva-mate, isopor, baldinho, pazinha, cadeira, bolsa, bola, esteira, protetor solar, chapéu de palha, álcool gel e, é lógico, a caixinha de som com wireless. Conduzido por uma coleira e logo em seguida no colo mesmo, um poodle, um pinscher ou um yorkshire…ou até mesmo os três juntos.
Instalado na areia quente, debaixo de um guarda-sol incapaz de fazer sombra, a tradição manda que você se alimente de alguma gororoba pingando óleo de trinta e cinco frituras enquanto entorna litros de cerveja aguada e morna. Não perca tempo procurando Heineken, Weiss, Bud ou Stella Artois. Esse tipo de frescura não combina com o ambiente. “Ceva” no litoral gaúcho só tem três: Skol, Polar e Itaipava. Ambas servidas à temperatura ambiente que, no caso, é de 40 graus à sombra. E em copo plástico. No guarda-sol à sua esquerda, tem um bando de gente tatuada escutando funk. À direita é a mesma coisa, só que a música é sertaneja. A praia pode estar borbulhando, mas você jamais – em hipótese alguma – ouvirá Miles Davis ou Norah Jones na playlist dos vizinhos. É funk e sertanejo. E em volume 10.
Mas escutar música ruim e tomar cerveja quente até fazem sentido, pois só existe uma maneira de ser feliz nesse ambiente: ignorar vozes humanas e estar abduzido pelo álcool. A sobriedade é muito perigosa quando você está suado, salgado, besuntado de uma meleca formada por bronzeador e areia e ardendo debaixo de um sol senegalês. Sem o entorpecimento proporcionado pela Itaipava e pela falecida Marília Mendonça, você pode se dar conta do vazio que é a existência humana na Terra….
Mas tem a volta: além daquela ressaca infernal e a cabeça que parece um bombo leguero você volta depois de dois dias para a Freeway para mais cinco, sete, doze horas com toda a família dormindo dentro do carro. Até cachorro. Só que agora, sua pele arde como um pimentão vermelho e você transpira feito um porco: praticamente um leitão à pururuca sobre rodas. Em casa, se joga no sofá e promete a si mesmo que nunca mais repetirá essa viagem aos quintos dos infernos. Mas quando chega a sexta-feira você já está com tudo pronto e no porta-malas do carro. E é voltar para a Freeway.
Seja grato por tudo isso, mas não espere que os outros sejam. A gratidão é uma virtude de poucos.
Daniel Andriotti
Publicado em 14/1/22