Filicídio e Paradigma

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A última sexta-feira foi um daqueles dias em que seria necessário fazer o tradicional “CRTL + Z” no comando da vida. Para quem não é muito familiarizado com a informática, “CRTL + Z” é o comando que fazemos no teclado do computador para que possamos ir apagando nossas últimas operações para refazê-las (ou não) de forma correta e adequada. Sexta passada foi um daqueles dias em que as circunstâncias nos aplicaram – não um, mas vários – socos na boca do estômago.

Logo cedo, na parte da manhã, ficamos sabendo que aqui do nosso lado, no bairro Jardim Santa Rita, havia o corpo – já sem vida – de uma criança dentro de um contêiner de lixo. Já bastava para estragar o final de semana. No início da tarde, a notícia de que um avião com 62 pessoas a bordo havia caído no interior de São Paulo, sem sobreviventes. E para fechar o dia, um caso muito semelhante com o de Guaíba: uma outra menina, dessa vez, em Novo Hamburgo, havia sido assassinada a facadas.

Só tem uma coisa pior do que a morte de duas crianças: é saber que quem as matou foi a própria mãe. No caso de Guaíba, a mãe admitiu à polícia que sedava a filha com calmantes porque ‘ela surtava’. Por isso, ‘eventualmente nem dormia em casa’. Sim, ela dormia dentro da carcaça de um automóvel abandonado no bairro. Além disso, a investigação identificou que a menina sofria múltiplas violências, era negligenciada, pedia comida na vizinhança quando não pegava alimentos daquele mesmo contêiner de lixo onde foi encontrada. Andava malvestida e sem higiene.

A mãe que matou a filha em Novo Hamburgo foi mais incisiva, mais direta, mas não menos cruel: executou a filha a facadas dentro do apartamento onde moravam, no centro da cidade. Ambas as mães assassinas estão presas. E deverão apodrecer na cadeia caso fiquem isoladas das demais detentas. Isso porque no mundo cão do cárcere, executar o próprio filho é sentença de morte sem dó nem piedade.

Filicídio é o nome deste ato deliberado de um pai ou de uma mãe para matar o próprio filho. A palavra vem do latim ‘filius’ , acrescentado do sufixo ‘cide’, que significa matar. Na mitologia grega, Medéia mata seus dois filhos como forma de retaliação a Jasão, seu cônjuge-traidor. Aqui não é muito diferente: estudos mostram que na maioria dos casos envolvendo violência contra crianças e adolescentes, os agressores em geral são os próprios pais envolvendo algum tipo de vingança. Apesar dos números, a sociedade ainda tem dificuldade em “aceitar” essa triste realidade, graças à idealização do chamado amor incondicional dos pais pelos filhos. A negação da existência de impulsos agressivos por parte dos pais, possivelmente oriundos de conflitos mal resolvidos, contribuem sobremaneira para que relutemos sobre a existência da violência doméstica contra crianças, a tal ponto que quase chega a ser comum. Quando vira filicídio, a mídia nos puxa para a realidade: as crianças Bernardo Boldrini e Isabela Nardoni, só para lembrar os casos mais emblemáticos, serão eternos exemplos.

Embora seja comprovadamente o meio de transporte mais seguro, um acidente de avião sempre choca. Quando a aeronave é pequena, com 2 ou 5 pessoas a bordo, nosso sentimento é o mesmo do acidente com um automóvel. Mas quando se trata de uma aeronave com mais de 60 pessoas dentro, a percepção é diferente porque a proporção muda o paradigma.

A vida é assim. Infelizmente.

 

Daniel Andriotti

Publicado em 16/8/24

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