Em 2002 a jovem universitária de classe média-alta da zona sul de São Paulo, Suzane von Richthofen teve a ‘brilhante ideia’ de assassinar seus pais. A crueldade do crime por espancamento, executado pelo cunhado com o auxílio do namorado dela, choca o Brasil até hoje – mesmo 20 anos depois. Por isso, a Amazon fez sua história virar não um, mas dois filmes chamados “A Menina/O Menino que Matou os Pais”. A dualidade teve um objetivo: gerar o contraditório no imaginário das pessoas a partir das diferentes versões contadas no Tribunal. Sensacionalismo na veia, parte I.
Em 2012, também em São Paulo, Elize Matsunaga deu um tiro na cabeça do marido, o empresário Marcos Matsunaga, presidente da empresa alimentícia Yoki. Fatiou o corpo dele em seis partes, colocou-as em várias sacolas e abandonou tudo num matagal a beira de uma estrada. Com esse roteiro macabro, a Netflix não perdeu tempo: produziu “Era Uma Vez Um Crime” numa série de quatro episódios. Sensacionalismo na veia, parte II.
Em 2013, o acionamento de um sinalizador pirotécnico deu início a um incêndio na superlotada Boate Kiss, em Santa Maria, matando 242 jovens, em sua maioria, asfixiados pela fumaça provocada pela queima de uma espuma altamente inflamável, utilizada inadequadamente como material de isolamento acústico. A reação da queima liberou gases como cianeto, dióxido e monóxido de carbono, entre outros; os mesmos utilizados pelos nazistas para o extermínio de judeus nas câmaras de gás durante o holocausto na segunda guerra mundial. Há cerca de duas semanas, a Netflix lançou – com ‘pompa e circunstância’ – uma série de cinco episódios do gênero drama biográfico chamada “Todo Dia a Mesma Noite”…
Em 2017, um ‘monstro’ que atendia pelo nome de Damião Soares dos Santos invadiu a creche “Gente Inocente” no interior de Minas Gerais, espalhou combustível por tudo e ateou fogo no local, atingindo crianças, pedagogas e funcionárias. Uma das professoras, Heley de Abreu Silva Batista, chegou a entrar em luta corporal com o criminoso na tentativa de impedir que ele continuasse com aquela barbárie. Depois, ajudou a retirar as crianças feridas – 10 morreram, mas 28 foram salvas. Heley teve 90% do corpo queimado e acabou morrendo no hospital, assim como outras duas funcionárias e o autor do ataque, totalizando quatorze mortos.
O caixão com o corpo da professora foi colocado em uma viatura do Corpo de Bombeiros e levado em cortejo pelas ruas da cidade até o Cemitério. Considerado um ‘gesto de coragem e de heroísmo para salvar a vida de seus alunos’, o então presidente Michel Temer decidiu conceder-lhe, a título post mortem, a Ordem Nacional do Mérito; e o governador do estado de Minas Gerais na época, Romeu Zema, homenageou a professora, também post mortem, com a Medalha da Inconfidência. Mas nenhuma produtora ‘vislumbrou’ uma boa bilheteria nesse roteiro…
A audiência dos filmes e documentários sensacionalistas mostra o quão doente está a nossa sociedade e o quanto são cruéis alguns meios midiáticos para transformar tragédias em fontes de dinheiro e entretenimento macabro. Muitos deles sem qualquer compromisso com o bom senso ou com algum resquício de ética em criar produções em cima de atrocidades. Os atos heroicos nesses casos são reconhecidos, muitas vezes post mortem e quem acaba ‘capitalizando’ para si as iniciativas em formas de homenagens são os mesmos que não perdem a chance de alguns segundos de fama: a classe política.
Infelizmente.
Daniel Andriotti
Publicado em 10/2/23