Quem me conhece – especificamente no quesito música – sabe que tenho um gosto confusamente eclético, porém apurado. Música bem-feita eu ouço. Gostar dela é outra conversa. Reconheço que, talvez, eu seja um saudosista. Mas tenho uma playlist no spotify que vai de Led Zeppelin a Trio Parada Dura, passando pelos cubanos do Buena Vista Social Club, pelos irlandeses do The Cranberries e pelos britânicos do Coldplay, entre outros tantos menos populares pelo mundo afora. E claro, de inúmeros brasileiros. Mas isso seria tema para mais umas dez colunas…
Vou me ater a esse mundo chamado Rio Grande do Sul: quando eu era pequeno e por influências familiares ouvia muito Teixeirinha e Gildo de Freitas. Talvez por isso me tornei um pouco mais seletivo com a música nativista. No final da década de 70 passei a perceber a alta qualidade de algumas composições dos festivais que eclodiam a cada final de semana em diferentes cidades do interior gaúcho, incluindo Guaíba, com a nostálgica Reculuta. Mas o festival dos festivais era a Califórnia, em Uruguaiana. E foi na nona edição desse festival que Telmo de Lima Freitas e seus parceiros do grupo “Os Cantores dos Sete Povos”, ganharam o cobiçado troféu “Calhandra de Ouro” com “Esquilador”, um tema épico até hoje.
A letra de ‘Esquilador’, para quem não é da fronteira, é quase que como ler japonês em braile. Gaúchos de apartamento que já padecem para entender expressões do hino não-oficial do Rio Grande do Sul, o Canto Alegretense, versos como “…Camoatim de mel campeiro / pedra moura das quebradas do Inhaduí”; não deve se atrever a tentar a compreensão de frases de ‘Esquilador’, como “Um descascarreia, o outro já maneia / e vai levantando para o tosador”… ou “ao cambiar de sorte levou cimbronaço / ouvindo o compasso tocado a motor”. E para confundir de vez os neurônios, “envidou os pagos numa só parada / 33 de espada, mas perdeu de mão”.
Em 2005, numa parceria do não menos mitológico Tio Nanato com João Luiz Corrêa, surgiu a composição “Pau que dá Cavaco”, outra obra-prima do contexto “quem não é do ramo não tente compreender”. No entanto, parece que só agora a música ‘estourou’, muito mais pela peculiaridade da letra do que pelo conjunto da obra no conceito ‘melodia-arranjo-interpretação’. Trata-se de uma expressão autêntica da música regional brasileira e, especificamente, do gênero gaúcho, reunindo expressões típicas e metáforas que descrevem um encontro amoroso com uma pitada de humor e malícia. Imaginem alguém que foi criado no nordeste, no Acre ou no Amazonas, tendo que traduzir termos como ‘xica manica’ e ‘véio vadico’, únicos de um linguajar mais coloquial e regional, característico das composições que buscam retratar o cotidiano e a cultura do povo do Sul do Brasil.
“…Morena retaca dessas de peito de bico / Mandou dizer que quer bater um papo comigo / E eu que conheço o artigo me deu um crique no caco / Tomei um banho, resquetei bem as melenas / Eu vou mostrar pra esta morena quem tem mais força no taco…/ Me vou de bico, viro a mico e a macaco / E vou mostrar pra xica véia qual é o pau que dá cavaco…”
A música nada mais é do que mais uma celebração da paixão e do jogo de sedução, com uma abordagem que valoriza a cultura e o linguajar do povo gaúcho. Não se trata de puxar a brasa para o lado do nosso assado, mas é diferente, por exemplo, da Anitta, quando ela diz: “Vai, malandra / Êtá louca, tu brincando com o bumbum / Tá pedindo / Se prepara, vou dançar, presta atenção / Cê aguenta / Se eu te olhar descer, quicar até o chão / Desce, rebola gostoso, empina me olhando / Eu te pego de jeito / Só começar embrazando contigo / É taca, taca, taca, taca…/ Não vou mais parar / Cê vai aguentar…”
Daniel Andriotti
Publicado em 16/2/24