Naqueles dias de pretérita adolescência, o quarto era precioso refúgio, único terreno particular do território social da família. Lugar onde tínhamos a liberdade exercida colocando cartazes pelas paredes, com mapas, reinos, regras e fórmulas, para facilitar os estudos. Era lá que ficavam guardados os cadernos e os livros, o aparelho de som portátil e os discos que embalavam sonhos. Nas gavetas bem fechadas da escrivaninha, fotografias, diários com anotações sobre sentimentos secretos; cartas e cartões recebidos, caderno de poesias e pensamentos, bloco de histórias criadas sobre incertezas e sonhos.
Em uma das paredes, a primeira que eu avistava ao entrar, em frente à porta, havia um pôster adorável. Sentado ao piano, John Lennon tocava. A luz do sol entrava suavemente, atravessando a grande porta de vidro que havia ao fundo da sala; cortinas de musseline pareciam se movimentar com o vento.
Momento dos melhores, quando chegava em casa, de volta da escola, era entrar naquele território sagrado de poetas e pacifistas. Largava livros e cadernos, escolhia um disco, ligava o som e descansava um pouco, observando, feliz, que o quadro do ex-beatle ainda estava li, no lugar que parecia perfeito.
Era contestador, o melhor dos Beatles, autor de “Imagine”, um hino ao amor universal e um mundo sem fronteiras. Apaixonado por Yoko Ono, por quem abandonara sua própria banda, defendia a paz protestando pacificamente contra as guerras. Mas o que representava verdadeiramente aquele pôster do John Lennon fui entender anos mais tarde.
Naquele quadro, estava a sutil mensagem de que era possível nos tornarmos adultos sem perder a paixão pela música e pela poesia, sem perder a esperança em um mundo melhor.
Em frente à mesa dos meus estudos e das minhas escritas, enfeitando outra parede, havia um cartaz com uma das tantas belas frases de Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz de 1964, recebido por sua incansável luta contra o racismo, pelos direitos civis para todos: “Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de vivermos como irmãos”.
Foi um grande líder, aquele homem negro norte-americano que defendia a bravura sem violência. Que descobriu em suas palavras as armas mais potentes, embora nunca as tenha utilizado para agredir alguém. Cada caderno meu estampava uma de suas emocionantes citações na primeira folha.
Em 1968, com 39 anos, perdeu a vida; foi atingido por um tiro na calma manhã de domingo. Doze anos depois, aos quarenta anos, John Lennon foi abatido da mesma forma, quando chegava em casa.
Tenho pensado nestes dois pacifistas, na inspiração que plantaram em meu coração naqueles dias de pretérita adolescência. E quando sinto a descrença se achegar, pronta para abalar minha esperança em um mundo melhor, repito a extraordinária frase de Martin Luther King: “Se eu soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira”.
E sigo em frente, cantarolando “Imagine”, do John Lennon.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 22/4/22