Há 84 anos a manchete de capa do jornal “A Época” foi: “O Rio Grande do Sul vive os dias mais angustiantes e catastróficos da sua história”. Abaixo, na linha de apoio: “As inundações assumiram proporções verdadeiramente avassaladoras”. Repito: 17 de maio de 1941…
Na madrugada do dia 4 de maio do ano passado, deixamos para trás nossa casa no Loteamento do Engenho. Lá dentro, alguns poucos pertences materiais que o dinheiro traz de volta, mas que fortuna alguma é capaz de repor os sentimentos que ficaram submersos. Clareava o dia quando saímos, pela porta da frente, a bordo de um barco sem motor capitaneado por uma das equipes da Defesa Civil, eu, Patrícia, Mariana, Irene e a mascote Dama, a nossa Golden Retriever. Não há como escrever ou descrever a sensação de ter que abandonar a própria casa, no fim de uma madrugada, com água suja e gelada pela cintura. Nossos vizinhos já tinham ido um pouco antes. Não fomos com eles porque tínhamos a convicção que aquela chuva ia parar a qualquer momento e a água que recém encharcava o nosso pátio secaria em pouco mais de 30 minutos.
Só que não…
A inundação foi chegando. Algumas horas antes ela já havia alagado a Cohab, a Santa Rita e o Ipê. E o que nos intrigava – e que resta como dúvida até hoje – é que aquela não era exatamente a água da chuva. Era uma água misteriosa que não sabíamos exatamente de onde vinha. Do rio Jacuí? De um açude cuja comporta se rompeu próximo ao Bom Retiro? Das lavouras de Eldorado do Sul? Ninguém nos trouxe uma resposta convincente para a origem daquela absurda quantidade de água. O que sabíamos, somente, é que ela vinha do lado oposto ao do rio Guaíba.
Na Cohab e Santa Rita a catástrofe se deu como uma inundação relâmpago. Tal qual uma Tsunami. Destruiu tudo e se foi. Mas quando essa mesma água chegou ao Ipê e ao Engenho ficou represada por mais de 20 dias. Isso porque esses dois bairros fizeram o papel de “bacia” de contenção. Àquela altura, o Guaíba – que jamais havia invadido o Engenho e o Ipê – já estava muito cheio (esse sim, pelo volume da chuva nos seus afluentes) sendo incapaz de receber, no seu curso natural, toda aquela quantidade de água que, repito, ninguém até hoje me convenceu de onde ela veio e como chegou até ali da forma que chegou.
É claro que em 2024 choveu tanto quanto em 1941. Talvez um pouco mais ou um pouco menos. Mas não fosse essa ‘água misteriosa’ que veio ‘de algum lugar’ e nossas vidas não teriam tomado o rumo que tomaram. A da minha família e a de muitos vizinhos. Abandonei sem qualquer saudosismo a cidade que nasci e me criei e pela qual sempre fui, digamos, apaixonado. Deixei para trás parentes, amigos e aquela sensação de me sentir ‘em casa’ quando andava pelas ruas da cidade. O Engenho, bairro que eu vivia há 19 anos, está feio, triste, sem cor, com aparência de sujo. Muitas casas foram abandonadas – ou estão à venda. A maioria delas com uma incontestável cicatriz: a marca embarrada da água nas suas paredes.
Daniel Andriotti
Publicado em 9/5/25