Na madrugada de 4 de maio desse ano – e lá se vão longos oito meses – deixamos para trás a nossa casa, inundada até a altura de um metro de uma água suja que não sabíamos de onde vinha. No escuro e em silêncio subimos num barco da defesa civil, eu, Patrícia, Mariana e a Dama, nossa Golden Retriever, além de algumas poucas roupas que couberam em duas ou três sacolas (sim, não tivemos tempo de ‘fazer as malas’). Na garagem, dois submarinos impotentes que, duas horas antes de deixarmos a casa, pareciam ser automóveis.
Se entre 2020 e 2022 a pandemia deixou suas feridas abertas, 2024 é, de longe, a pior da história da presença civilizada no Rio Grande do Sul. Esse ciclo de doze meses, que daqui a pouco termina, é o ano que vai ficar marcado pelas sequelas da inundação. A maior tragédia climática e ambiental da história do Continente de São Pedro levou poucas vidas, é verdade. Inundou casas, arrastou móveis, mas a força da solidariedade não permitiu que lares fossem destruídos. Embarrou histórias e jogou lembranças no esgoto fétido. O sentimento de alívio por sobreviver é válido, lógico. Mas é uma euforia passageira.
Desde 1941 – data da até então pior enchente registrada no Rio Grande do Sul – se passaram 83 anos. E agora, oito meses depois, muitos dos 2,3 milhões de gaúchos afetados ainda não voltaram para as suas casas. E nem vão voltar. Eu sou um deles. A linha horizontal de cor terrosa nas paredes das casas e o cheiro de esgoto ainda estão lá, como marcas de guerra. Outro fato a ser analisado nesse contexto é que o voluntariado tem limite. Ainda que sua contribuição tenha sido fundamental e um exemplo magnífico da solidariedade humana, o fato é que alguns dias depois de a tragédia deixar de ser pauta da grande mídia a maioria dos voluntários volta para casa até porque não são profissionais e cada um tem que cuidar da sua vida.
Hoje, quando retorno às ruas do bairro em que morei por 19 anos, não sei bem por qual motivo me sinto um estrangeiro, que viu de passagem um caminhão blindado do exército cruzar por um jet-ski na esquina da minha rua. Imagens ainda absurdas na tentativa de encontrar um sentido na cidade em que nasci e me criei e que agora me parece tão distante. Hoje, moro do outro lado do rio que, naquele começo de maio subiu quatro metros em cinco dias. Mas ainda assim, a cada vez que o céu fica nublado novamente, dispara o gatilho do pânico naqueles que tiveram as suas casas alagadas.
Os mais otimistas acreditam que uma próxima catástrofe dessa magnitude pode levar outros 80 anos. Não tenho tanta certeza disso. Quando sobrevivi à Covid – até porque se tive, nem sei – entendi que Deus havia me poupado de uma tragédia que levou tantos amigos e familiares, mas me mostrou que relaxar é para os fracos, porque nunca, ninguém, está livre de nada, logo ali adiante. É preciso estar atento e forte. Não se morre na véspera, mas também não ficamos para a semente…
Daniel Andriotti
Publicado em 6/12/24