Assistindo uma entrevista com artista baiano cheio de uma bossa requebrada que não temos nestes pagos sulistas, certas declarações sobre o nosso gosto musical me deixaram desconfortável. Segundo aquele embaixador do axé e de outras modalidades da extravagante brasilidade, as festas no Rio Grande do Sul são desanimadas, falta pimenta e saculejo nas músicas, algumas são cantadas em espanhol. Parece até que estamos em outro país, concluiu o forasteiro.
Não, pensei em voz alta; nós não pertencemos a outro país, também somos brasileiros, com tudo que esse título territorial representa. E por mais complicado que seja entender a mania local de andarmos pelas ruas carregando cuia e garrafa térmica, o encantamento que nos provoca um tango argentino bem tocado ou uma fronteiriça milonga uruguaia, sabemos que, apesar das diferenças culturais, influência direta dos vizinhos latinos, não somos melhores nem piores do que os conterrâneos dos outros pagos nacionais.
Diferentes, apenas, assim somos nós, os gaúchos; gente de fala mais firme, sem erres espichados nem chiados, por vezes até dramática e em tom de brabeza. Nisso, verdade seja dita, carecemos de delicadeza, somos meio brutos nos dizeres, como quem carrega faca nas botas.
Apreciamos um bom vinho tinto, das uvas plantadas e colhidas nos parreirais das serras que nos pertencem, viés italiano que se agregou. E quando rimos, costuma ser com muito gosto, seja pelos causos campeiros e engraçados que nos contam ou pelas frases de um espanhol cheio de enganos que falamos.
Quando se trata de rivalidade, ninguém há que nos alcance no futebol e na política. Nesta ponta de mapa, onde o frio às vezes é de renguear cusco, nossas torcidas vestem vermelho e branco ou azul com preto, nunca misturam cores tão sagradas. Nos períodos eleitorais, explicitamos a falta de afeição contra aquele outro partido e seu candidato, não nos importando que saibam da tal implicância, recíproca e enraizada. Somos dessas ou daquelas cores, desse ou daquele partido, a favor ou contra, isso ou aquilo, assim ou assado; e gostamos que toda gente saiba.
Por aqui, nestes pampas em que você é chamado de tu, coisa boa é tri-legal e o vento minuano varre as praias em pleno verão, sonhamos com temporada no Rio de Janeiro, desfilando nas grandes escolas de samba; queremos trabalhar e fazer fortuna em São Paulo; quem sabe plantar soja no Mato Grosso; abrir um restaurante em Brasília, vender xales de crochê em Belo Horizonte, construir pousada em Santa Catarina. Para assim acomodarmos essa avassaladora paixão pelos revolucionários farroupilhas e suas atitudes bravias.
E nas noites de Cruzeiro do Sul brilhando nos céus, parece ainda mais reluzente o amor por este Estado que encerra o mapa do País. Porque é assim que nós somos, os gaúchos. Gente que ama o seu lar, que vive no extremo sul da América do Sul.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 16/9/22