Você acha possível uma empresa fabricar um produto com qualidade inferior aos demais no seu segmento de mercado e mesmo assim seja capaz de conquistar uma legião de pessoas aficcionadas por ela? Sim, é possível. Como? A partir do momento em que ela consegue construir marcas que se transformem em ícones culturais. E quando isso acontece, os argumentos técnicos dos grandes especialistas caem por terra uma vez que os consumidores entram numa relação de paixão com as marcas que mais admiram.
Eu nunca tive uma Harley-Davidson, por exemplo. Mas confesso ser um admirador da moto mais cobiçada do mundo por homens com idades acima dos 35 anos. Pois a americana Harley-Davidson é um clássico desse tipo de fenômeno. Se comparada às suas principais rivais, como as japonesas Suzuki e Kawasaki, pode-se concluir que as Harley’s não são tão confortáveis e têm motores menos potentes. Motores esses, famosos por pequenos problemas como vazamentos de óleo. Entretanto, não só no mundo das motocicletas – mas também no dos automóveis – velocidade e conforto parecem não ser os atributos-chave para a decisão de compra. Mas então, se a Harley não é referência nessas virtudes, por que as pessoas amam essa marca? A resposta é simples. A empresa sabe que comunicar as especificações do produto não é o que encanta o seu cliente. Ela quer despertar emoções, promover valores e se conectar com o seu segmento de público. No caso da Harley-Davidson o que realmente importa não é a gota de óleo que vaza do motor, mas sim o som que aquele motor de ronco único emite, ainda que com o torque baixo da aceleração. Tanto que a empresa afirma possuir ‘direitos autorais’ sobre o ronco do motor, mesmo sem registro oficial de patente. Outro detalhe que impressiona a concorrência: a maioria dos motociclistas apaixonados por uma Harley não se preocupa com alta velocidade….
A grande diferença é que as motos japonesas, embora mais potentes e velozes, não dão a mesma sensação de poder transmitida por uma Harley. Os atributos da marca estão inseridos em sua estética, no tradicional e inconfundível ruído do seu motor e na imagem crua e forte que se traduz na personalidade de pessoas que desejam uma vida de liberdade e ausência de regras. Mas e quanto aos famosos problemas mecânicos que as motocicletas dessa marca normalmente apresentam? Quem ama não vê defeitos. E tem mais: não gosta de deixar o seu ‘xodó’ numa oficina para ‘qualquer um’ mexer. O dono de uma Harley quer mesmo é virar um “casca-grossa” e solucionar pequenos problemas técnicos da sua moto na própria garagem.
Resumo da ópera: uma grande marca nem sempre precisa ter o melhor produto. Desde que tenha um bom e único propósito: valor.
E o McDonald’s, que na minha opinião faz um produto caro, de qualidade duvidosa, num lugar onde você sempre é mal atendido por pessoas que, até onde sabemos, são mal remuneradas; seus lanches são tratados por especialistas como ‘comida que engorda’, mas suas lanchonetes estão sempre lotadas. Essa é uma outra longa história de sucesso. Parecida com a da Harley…
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E depois de 96 anos, a rainha nos deixou. Agora o rei é Charles. Nunca confundir com o Ray Charles, o músico cego norte-americano. O Charles rei do Reino Unido e de mais 14 estados além de comandar a Commonwealth, uma grande organização intergovernamental composta por 53 países independentes, tem algumas manias, digamos, meio excêntricas: não almoça, tem regras restritas em relação ao banho e só utiliza uma única marca de papel higiênico. Não almoçar e ter preferência por uma marca de papel higiênico, é de se aceitar. Mas o que seriam ‘regras restritas em relação ao banho???”
Difícil levar a sério alguém assim. Penso que a rainha vai fazer falta…
Daniel Andriotti
Publicado em 16/9/22