A água chegou com tudo e fez a base tremer, até um pedaço arrancou. O Lago se veio sem freio, invadindo a terra e arrastando o tanto que pode.
A água com lama entrou nos prédios sem bater, nas escolas, nas ruas e praças, carregando móveis e memórias.
E com teimosia de coisa grudenta, a água marrom custa a seguir seu rumo, não bastasse o estrago que fez, a dor que causou.
Tudo bem que a água tomou áreas que lhe foram tiradas, chamando a atenção para o descaso, mas invadir casa de gente trabalhadora é covardia.
O desaforo da lama nas paredes e o passa pé nas geladeiras são golpes baixos.
O lar, seja humilde ou luxuoso, é o templo da família, espaço sagrado onde descansamos da luta, planejamos o futuro, nos alimentamos, vivemos e confraternizamos com os nossos. Mas isso foi completamente ignorado nestes dias encharcados no Rio Grande do Sul.
A hora de voltar pra casa sempre chega e deve ser motivo de alegria, mas desta vez não foi. A tristeza estava lá, cheia de arrogância, destruição e mau cheiro. Estava lá pensando ser dona da casa, mas se iludiu com o choro incontido.
Muita coisa caiu, muita coisa estragou, muito sofrimento para encarar; até vidas a água levou, mas a casa continua sendo nossa e não da enchente ou da tristeza.
A paleia é das grandes, mas estamos de pé.
Auxílio Reconstrução
O Governo Federal anunciou, no dia 15, que irá disponibilizar o Auxílio Reconstrução no valor de R$ 5,1 mil por família atingida pela cheia no RS. O objetivo é ajudar cerca de 240 mil famílias na aquisição de eletrodomésticos, móveis e outros itens perdidos nas enchentes.
A iniciativa é importante, mas é preciso que a população saiba que entre o anúncio midiático e o saque do dinheiro no caixa tem um caminho de burocracia a ser percorrido.
O acesso ao recurso dependerá das informações a serem enviadas pelo Executivo Municipal e da autodeclaração do responsável familiar, que atestará, sob penas da lei, o cumprimento dos requisitos. Na teoria parece simples, mas é preciso lembrar que os municípios, assim como seus habitantes, estão bastante fragilizados, ainda buscando sobreviver.
Resgatando a História da Família
Em uma das ruas do Bairro Santa Rita, onde os moradores trabalhavam duro após a inundação invasiva para recuperar seus pertences, a Gazeta encontrou a auxiliar de limpeza Lenir Monteiro, 61 anos de idade, tentando recuperar documentos e fotos de sua família.
Aproveitando um olho de sol no outro lado da rua, em frente a sua casa, Lenir distribuiu o material sobre a calçada. Ela olhava com serenidade cada folha e fotografia, num resgate zeloso da história familiar que a água encharcou, mas não destruiu. Lenir mora no Bloco 271 com o marido Valdemar, vendedor experiente, que tentava recuperar o carro estacionado nas proximidades, com a ajuda de vizinhos. Isso foi registrado na edição digital 1596 da Gazeta Centro-Sul. A imagem é destaque também nesta edição impressa.
Casos Polêmicos
Há questões que aconteceram neste contexto dramático que precisam ser esclarecidas. Mas, como já disse antes, isso tem que acontecer no momento oportuno, sem aproveitadores políticos na volta.
Neste contexto, será realizada uma audiência pública na Câmara Municipal de Guaíba, no dia 27 de maio, com início às 18 horas. Se há questões a serem esclarecidas, este será o momento oportuno.
A solidariedade me surpreendeu
Em pensava que a sociedade estava doente e não tinha mais volta. Pensava assim por conta da agressividade e do egocentrismo que impera nas redes sociais e nas relações humanas em geral.
A polarização doentia na política, os valores distorcidos, a insegurança jurídica, a corrupção cultural e as desigualdades sociais, aos poucos, foram me levando a desacreditar na nossa espécie. Entretanto, no meio de tanta dor, do sofrimento de famílias perdendo suas casas, a solidariedade aflorou com uma intensidade impressionante.
Gente carregando gente, se atirando na água para salvar estranhos. Gente que perdeu tudo dentro da sua casa e mesmo assim foi para a linha de frente salvar, alcançar, fazer comida e acolher. Por conta do meu trabalho no jornalismo, eu presenciei esta solidariedade toda, este amor ao próximo que pensava estar extinto.
Nas edições históricas da Gazeta Centro-Sul, abordando sobre esta catástrofe climática, há registros relevantes desta força do voluntariado que se destacam a ponto de abafar a tristeza e a maldade.
Que bacana, que bom ter sido surpreendido como fui, que bênção ter a oportunidade de testemunhar o quanto o ser humano ainda é capaz de enfrentar e superar adversidades.
Quero agradecer publicamente todas as pessoas que trabalham como voluntárias neste momento difícil, agradecer o apoio que estamos recebendo de todo o Brasil aqui no Rio Grande do Sul. Gratidão é outra assinatura humana importante.
Destaques
Além dos voluntários, é preciso destacar, ainda, o trabalho das forças policiais: Brigada Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros; das forças armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica; das entidades de classe, cooperativas, clubes de serviços, instituições sociais, ações governamentais honestas e, principalmente, pessoas que trabalharam intensamente para salvar e acolher de forma anônima.
Leandro André
Publicado em 24/5/24