Final de ano chegando, certas lembranças estudantis me invadem. Entre as diversas histórias, dramáticas e engraçadas, várias aconteceram com o mesmo professor, um alemão naturalizado brasileiro. Em suas aulas, nos equilibrávamos sobre uma tênue linha que separava respeito/admiração extrema da raiva/vontade de lhe dar uma boa lição.
Ficávamos em absoluto silêncio naquelas aulas, quase imóveis, nutrindo, em segredo, um medo que era generalizado. Foi assim durante a maior parte dos quatro anos do curso de Matemática, na disciplina de Cálculo. Um lápis que caísse naquele parquê bem encerado nos assustava.
Éramos cerca de quarenta jovens universitários que sonhavam com a bela e poderosa carreira de professor. Queríamos transformar o mundo através do conhecimento, trilhando o caminho do raciocínio lógico. Mas aquele professor, beirando os sessenta anos, de inteligência fora do comum para as ciências exatas, nos deixava atônitos com seu método nada gentil de ensinar.
Quando não respondíamos com a exatidão que cobrava, deixava-nos no maior constrangimento. Fazia questão de mostrar que a sua capacidade intelectual era muito superior. Por conta disso, diversas vezes tivemos ímpetos de rebatê-lo com atrevimento, mas aguentamos firmes, pois aquele professor, por seu conhecimento elogiável, coordenava o curso.
Toda vez que entrava em aula, ele escrevia mensagens em outros idiomas e pedia a nossa opinião. Poliglota que era, se exibia com o título de “doutor em Cálculo”, conquistado na Universidade de Berlim. Mas sempre tem o dia da volta por cima, e o nosso também chegou.
Em conversa informal, compartilhando café no intervalo, eu mais três colegas, indignadas pela demonstração de menosprezo pela inteligência feminina, descobrimos como deixá-lo na maior saia justa do mundo.
Uma delas sabia falar um pouco de tupi-guarani, aprendera com o namorado peruano, e colocou uma expressão no quadro, antes da chegada do nosso professor, para observarmos a reação dele. Apenas apagou, sem fazer comentário. Eu e as outras duas, pela observação rotineira de chegada e saída do mestre, concluímos que ele não sabia dirigir.
Alívio ao quadrado, chegáramos às valiosas descobertas através do raciocínio lógico que o próprio mestre tanto nos fazia treinar. Que maravilha!
Turma avisada, logo que o professor entrou e escreveu uma frase em alemão, que ninguém soube traduzir, nossa colega, a namorada do peruano, lascou uma frase em tupi-guarani. Não entendendo, o professor perguntou o que significava. E ela respondeu com espanto e questionamento: “Não acredito! O senhor não fala o guarani?”. Ficamos sem a resposta dele.
Na saída, outra colega lhe ofereceu carona, como combináramos. Ele agradeceu e disse que sua esposa lhe buscaria. E ela lascou: “Não acredito! O senhor não sabe dirigir?”.
Naquele dezembro, não houve mais comentários pejorativos por parte do nosso professor de Cálculo. Ele continuou exigente e brabo, mas passou a nos respeitar. E todos nós aprendemos que a inteligência é relativa.
* Texto inspirado na coluna escrita em 2005
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 17/12/21