Ser humano que era, podia ter seus defeitos, o pai, quem sabe cometido erros, dito palavras ríspidas para alguém; ou deixado de cumprir promessa, ter se esquecido de presentear aniversariante, nunca saberei. Mas não me importo, nada disso me interessa.
Sobre o pai, quero falar das qualidades e dos acertos, das frases inteligentes e da profunda solidariedade, das mãos sempre estendidas àqueles que precisassem de ajuda. Da preocupação com a boa educação dos filhos, do seu contentamento com a música, os livros, o violão que dedilhava.
Pode não ter sido um homem perfeito, o pai, quem sabe devesse ter se exercitado mais, praticado esportes e andado de bicicleta, fumado menos e cuidado melhor da própria saúde, jamais terei as respostas. E não pretendo procurá-las, são desnecessárias. Foi com seu jeito sem pressa e seus gestos protetores que minha infância se fez serena, sem medo de bruxas nem de lobos maus.
Em se tratando do pai, gosto de lembrar dos sorrisos, olhos brilhando de felicidade, quando me via com bonecas e panelinhas, entre as hortênsias coloridas do nosso jardim, mergulhada no universo de faz-de-conta infantil. E das vezes em que lia as notícias publicadas no grande jornal, quieto, pensativo.
Se foi um príncipe encantado, o pai, chegando em cavalo branco para salvar a mãe do dragão, ou libertá-la das garras de alguma rainha má, isso, sinceramente, desconheço. Tudo bem, não me faz diferença. O que sei do amor que tiveram é que se traduziu em vidas, incluindo a minha.
Das verdades sobre o pai, aquelas que realmente interessam, sei do respeito ao conhecimento, das muitas amizades, dos abraços que me dava. Em seu colo afetuoso, me abriguei de trovões e ventanias que aconteciam lá fora, tive o conforto dos castelos encantados na casa feita de tijolos da nossa vida real.
Pode não ter sido um grande mercador, o pai, nem ter negociado joias raras e sedas puras, vinhos finos e cristais, isso não o fez menos importante. No balcão da Casa Brasil, o seu sortido armazém tapense, atendia com delicado bom-humor, vendia fiado parecendo não precisar de dinheiro, dava trabalho aos que precisavam alimentar filhos.
De tudo que deixou, além da saudade e das histórias contadas pela mãe, o que tem maior valia é o amor de filha agradecida que carrego vida afora, sobre o qual faço questão de falar. E as belas melodias antigas que aprendi ainda criança, o olhar esperançoso, a encantadora simplicidade de gente sensível.
Ser humano que era, podia ter seus defeitos, o pai, cometido alguns erros, mas nada disso me interessa. Da herança paterna, o que me coube foi a própria vida, e esse tesouro me basta.
Cristina André
cristina.andre.gazeta@gmail.com
Publicado em 12/8/22